O psiquiatra e psicanalista Plínio Montagna,
presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, explica que
existe um nível ideal de ansiedade e por que ela é importante para a mente
IVAN MARTINS
O psicanalistas Plínio Montagna avisa logo de cara: “Não tenho nada
contra o uso de medicamentos psiquiátricos”. Presidente da Sociedade Brasileira
de Psicanálise, formado em psiquiatria, ele acredita que, depois de um período
de radicalização em direção aos remédios, o pêndulo está retornando ao
equilíbrio, no qual a psicanálise – a cura pela palavra – e a psiquiatria – a
cura pelos medicamentos – voltarão a se complementar, como deve ser. Em seu
consultório, Montagna recebe pacientes supermedicados e gente viciada em
calmantes, para a qual foi dada pouca atenção psicológica. Nesta entrevista por
email ele fala sobre supressão de emoções, vida nas cidades, pobreza e
ansiedade.
ÉPOCA: O que o aumento das vendas de Rivotril revela sobre os
brasileiros? Somos um país de ansiosos que fingem ser divertidos e relaxados?
Plinio Montagna: Revela que os brasileiros foram sujeitos a uma mudança
cultural em que o estigma de se tomar medicações psiquiátricas se inverteu quase
180 graus. Há uma glamourização do medicar-se. Muitas questões do viver são
tratadas como se fossem questões médico-psiquiátricas. Contribui para isso a
avassaladora quantidade de dólares gastos na divulgação desses produtos pela
indústria farmacêutica internacional. Emoções absolutamente normais e até
importantes para a mente, como a tristeza numa situação de dor ou ansiedade em
situação de perigo, podem ser tidas como inconvenientes e simplesmente
aniquiladas por medicações. Afinal, incomodam o indivíduo ou aos outros. A
pessoa é muitas vezes levada a suprimir suas emoções tomando ansiolíticos. Esse
é um uso completamente inadequado, mas frequente. E ocorre com frequência maior
do que imaginamos.
ÉPOCA: O modo de vida urbano moderno produz
ansiedade e induz naturalmente ao uso de ansiolítico? Isso é verdade para outras
cidades do mundo?
Montagna: Cada vez mais a vida humana se dá em cidades. Há no entanto
cidades e cidades, com modos de vida muito diversos entre si. As exigências de
uma cidade como São Paulo e as metrópoles podem ser estressantes, mas a vida nas
cavernas ameaçada pelo ataque de um animal selvagem também era. Todas as pessoas
e as culturas têm seus meios de lidar com a ansiedade. O mais imediato hoje é a
prescrição de benzodiazepínicos, drogas baratas, eficazes, mas com o risco de
gerarem dependência. Há estresses específicos, numa metrópole como São Paulo, no
ritmo de vida contemporâneo, que podem gerar respostas como ansiedade crônica. É
importante que a pessoa conte com uma espécie de "reserva ecológica" externa e
um espaço interno para pensar.
ÉPOCA: Esse tipo de queixa é cada vez mais
comum nos consultórios?
Montagna: Frequentemente nos deparamos na clínica com pacientes que vivem
uma vida automática, robotizada, encontram-se desvitalizados e têm uma vida
psíquica extremamente pobre, restrita. A rigor isto é verdade para uma parcela
das pessoas e para as pessoas por algum tempo. Quase todos precisam de um
descanso para o pensar. Assistir a um filme de ação, a um videoclipe e se deixar
levar, sem muitos questionamentos. Mas há pessoas que só vivem nesse nível "de
piloto automático". Não conseguem vivenciar um nível de experiência mais
"mentalizado", que permita saborear um objeto cultural, uma obra de arte, ou
pensar autonomamente acerca de si mesma e do mundo. Isto se relaciona com o
mundo atual, possivelmente urbano, de modo geral, ou sempre que as coisas já
venham prontas para o indivíduo. Note-se que a vida urbana hoje em dia apresenta
complexidades que não apresentava antes, mas intelectuais e psicomotoras, não de
aprofundamento de vivências emocionais.
ÉPOCA: A pobreza brasileira, e seus reflexos
na saúde pública, é capaz de explicar sozinha o uso abusivo de medicamentos
psiquiátricos?
Montagna: O sistema de saúde brasileiro, ineficiente, leva à prescrição
excessiva por falta de um tempo decente para uma consulta médica no SUS e em
muitos convênios. Suprime-se dentre outras coisas um instrumento também
fundamental no ato médico, que é a relação médico- paciente. Mesmo que o
profissional esteja preparado para isso (o que não é sempre o caso hoje em dia),
ele não tem condições de dedicar muitos minutos ao paciente numa consulta de
convênios ou do SUS. Aí uma prescrição rápida, indolor, é usada. Mas sozinha
deixa de lado muito das questões do paciente. Não me parece uma questão de
pobreza, mas de ideologia e de gestão de saúde.
ÉPOCA: Do ponto de vista da psicanálise, o
que é a ansiedade? É uma dessas coisas de fundo genético (como se diz
modernamente da depressão e da esquizofrenia) ou é ambiental e circunstancial?
De onde ela vem?
Montagna: Na escala prazer-desprazer, a ansiedade é um estado emocional
desprazeroso. Está relacionado ao sentimento de incapacidade psíquica do ego
diante de um perigo que o ameaça, de origem interna ou externa. No limite talvez
seja a mais primitiva experiência psíquica do ser humano. Nesse nível, está
relacionada ao medo de algo que ele mesmo não sabe nomear. De todo modo, as
ansiedades básicas do ser humano são a ansiedade de aniquilação (ou morte)
psíquica ou física, de castração, de separação. A vida psíquica humana nunca é
puramente genética ou ambiental. A penetrância de um gene depende de fatores
ambientais. Basta verificar que gêmeos univitelinos são diferentes entre si. É
importante lembrar que a ansiedade é um combustível essencial para o
funcionamento mental. Pode-se usar o modelo de um violão. Há uma tensão das
cordas que permite a música soar. Se o estiramento for excessivo, elas se
rompem. Se estiverem muito frouxas, não sai música. Ansiedade é assim, em
relação ao funcionamento do psiquismo.
ÉPOCA: Tomar ansiolítico para dormir é
diferente de tomar ansiolítico para aguentar o dia? O que significa o fato de
não conseguir dormir? Ou acordar no meio da noite esbaforido?
Montagna: A insônia é um fenômeno complexo. Ela requer uma capacidade de
se retirar da realidade externa e se isolar de alguns estímulos internos, de
diversas ordens. Há diversos tipos de insônia, do ponto de vista psicodinâmico.
Alguns tipos estão relacionados a um conteúdo temido. Por exemplo, o indivíduo
inconscientemente tem medo de morrer dormindo. Ou relaciona o sono à morte.
Outras insônias estão ligadas a uma saturação fatigante de estímulos psíquicos
diversos, não necessariamente ligados a conteúdos. De modo geral, a insônia
revela uma incapacidade de metabolizar basicamente estímulos e experiências
vividas, sejam elas por estímulos internos ou externos. Não houve suficiente "
digestão" desses estímulos. Se o indivíduo consegue dormir, o processamento das
vivências pode ser auxiliado pelo sonhar. O dormir implica na necessidade da
presença do que o poeta inglês John Keats chamou de capacidade negativa. É a
capacidade de sustentar turbulências internas, incertezas, mistérios, sem se
desesperar. Se não há essa capacidade, o indivíduo não consegue criar um espaço
dentro de si que funcione como uma barreira à estimulação excessiva. Um tipo de
insônia se relaciona à impossibilidade de uso, momentâneo ou permanente , de uma
vida de imaginação criativa.
ÉPOCA: Se a medicina moderna vê as questões
mentais apenas como equilíbrios e desequilíbrios químicos, se virou as costas
para Freud, é natural que se receitem remédios o tempo todo, não? Se a insônia é
vista como um problema, e não como a manifestação de um problema, a forma lógica
de tratá-la é com indutores de sono...
Montagna: Recebo frequentemente pacientes medicados com dosagens
excessivas de medicação ou com "coquetéis" de diversas substâncias. Isso revela
que os aspectos dinâmicos e relacionais do paciente não estão sendo levados em
consideração. Isso se dá muitas vezes por despreparo de muitos psiquiatras sobre
psicanálise, além da maciça publicidade dos laboratórios farmacêuticos. Não é
rara, absolutamente, a dependência. Muitas vezes os médicos vão mudando de
medicação a outra e não conseguem tratar os aspectos psicológicos,
psicodinâmicos, da pessoa. Mas creio que o pêndulo da história começa a oscilar
agora para o lado da psicanálise, pela necessidade clínica. Os médicos
não-psiquiatras estão tendo a consciência dos benefícios que a psicanálise pode
trazer a seus pacientes. E a psicanálise amadureceu, a abordagem é mais
realista, avançou muito e tem consciência de seus limites. Suas descobertas em
relação ao psiquismo humano têm sido expressivas e possibilitado o acesso a
pacientes antes impossíveis para ela. Um fato interessante é que muitas pessoas,
pela propaganda farmacêutica maciça, tomando drogas de última geração, se
imaginam bem tratadas. Podem ser, de fato, muitas vezes. Mas muitas e muitas
outras vezes é preciso diminuir dosagens ou mesmo suprimir medicações. Com um
acompanhamento psicodinâmico ou psicanalítico, a pessoa vai ter uma outra
dimensão do que acontece com ela. A melhora ocorre naturalmente.
Colaboração: Angela C. A.
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